2.8.09

Sobre o Mar e Clarice

Há algum tempo li "Uma aprendizagem", esse livro me arrebatou de uma forma como há muito um não o fazia. A Clarice tinha um fazer literário que me traz grande admiração. Me sinto muitas fezes sem ar ao lê-la e não me canso de sempre (re) descobri-la.


"Adormeceu de novo e dessa vez profundamente pois quando com uma espécie
de sobressalto acordara já era dia. Olhou o relógio: eram cinco e dez da manhã clara e
límpida. A praia ainda estaria deserta e ela ia aprender o quê? Iria como para o nada.
Vestiu o maio e o roupão, e em jejum mesmo caminhou até a praia. Estava tão
fresco e bom na rua! Onde não passava ninguém ainda, senão ao longe a carroça do
leiteiro. Continuou a andar e a olhar, olhar, olhar, vendo. Era um corpo a corpo consigo
mesma dessa vez. Escura, machucada, cega — como achar nesse corpo-a-corpo um
diamante diminuto mas que fosse feérico, tão feérico como imaginava que deveriam ser
os prazeres. Mesmo que não os achasse agora, ela sabia, sua exigência se havia tornado
infatigável. Ia perder ou ganhar? Mas continuaria seu corpo-a-corpo com a vida. Nem
seria com a sua própria vida, mas com a vida. Alguma coisa se desencadeara nela, enfim.
E aí estava ele, o mar.
Aí estava o mar, a mais ininteligível das existências não-humanas. E ali estava a
mulher, de pé, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fizera um dia uma
pergunta sobre si mesmo, tornara-se o mais ininteligível dos seres onde circulava sangue.
Ela e o mar.
Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a
entrega de dois mundos in-cognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam
duas compreensões.
Lóri olhava o mar, era o que podia fazer. Ele só lhe era delimitado pela linha do
horizonte, isto é, pela sua incapacidade humana de ver a curvatura da terra.
Deviam ser seis horas da manhã. O cão livre hesitava na praia, o cão negro. Por
que é que um cão é tão livre? Porque ele é o mistério vivo que não se indaga. A mulher
hesita porque vai entrar.
Seu corpo se consola de sua própria exigüidade em relação à vastidão do mar
porque é a exigüidade do corpo que o permite tornar-se quente e delimitado, e o que a
tornava pobre e livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo
entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio da madrugada.
A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem. Com a praia
vazia nessa hora, ela não tem o exemplo de outros humanos que transformam a entrada
no mar em simples jogo leviano de viver. Lóri está sozinha. O mar salgado não é sozinho
porque é salgado e grande, e isso é uma realização da Natureza. A coragem de Lóri é a
de, não se conhecendo, no entanto prosseguir, e agir sem se conhecer exige coragem.
Vai entrando. A água salgadíssima é de um frio que lhe arrepia e agride em ritual
as pernas.
Mas uma alegria fatal — a alegria é uma fatalidade — já a tomou, embora nem
lhe ocorra sorrir. Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante
que a desperta de seu mais adormecido sono secular.
E agora está alerta, mesmo sem pensar, como um pescador está alerta sem
pensar. A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda — e abre caminho na
gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a
oposição pode ser um pedido secreto.
O caminho lento aumenta sua coragem secreta — e de repente ela se deixa
cobrir pela primeira onda! O sal, o iodo, tudo líquido deixam-na por uns instantes cega,
toda escorrendo — espantada de pé, fertilizada.
Agora que o corpo todo está molhado e dos cabelos escorre água, agora o frio se
transforma em frígido. Avançando, ela abre as águas do mundo pelo meio. Já não precisa
de coragem, agora já é antiga no ritual retomado que abandonara há milênios. Abaixa a
cabeça dentro do brilho do mar, e retira uma cabeleira que sai escorrendo toda sobre os
olhos salgados que ardem. Brinca com a mão na água, pausada, os cabelos ao sol quase
imediatamente já estão se endurecendo de sal. Com a concha das mãos e com a altivez
dos que nunca darão explicação nem a eles mesmos: com a concha das mãos cheias de
água, bebe-a em goles grandes, bons para a saúde de um corpo.
E era isso o que estava lhe faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de
um homem.
Agora ela está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se constringe pelo
sal, os olhos avermelham-se pelo sal que seca, as ondas lhe batem e voltam, lhe batem e
voltam pois ela é um anteparo compacto.
Mergulha de novo, de novo bebe mais água, agora sem sofreguidão pois já
conhece e já tem um ritmo de vida no mar. Ela é a amante que não teme pois que sabe
que terá tudo de novo.
O sol se abre mais e arrepia-a ao secá-la, ela mergulha de novo: está cada vez
menos sôfrega e menos aguda. Agora sabe o que quer: quer ficar de pé parada no mar.
Assim fica, pois. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, bate, volta. A
mulher não recebe transmissões nem transmite. Não precisa de comunicação.
Depois caminha dentro da água de volta à praia, e as ondas empurram-na
suavemente ajudando-a a sair. Não está caminhando sobre as águas — ah nunca faria
isso depois que há milênios já haviam andado sobre as águas — mas ninguém lhe tira
isso: caminhar dentro das águas. Às vezes o mar lhe opõe resistência à sua saída
puxando-a com força para trás, mas então a proa da mulher avança um pouco mais dura
e áspera.
E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que
o esqueça, nunca poderá perder tudo isso. De algum modo obscuro seus cabelos
escorridos são de náufrago. Porque sabe — sabe que fez um perigo. Um perigo tão
antigo quanto o ser humano."

Um comentário:

Léo de Azevedo disse...

Tb sou louco por Clarice.
Este é um dos meus livros favoritos, nunca sai de perto de mim.
Adoro também o de contos Felicidade Clandestina.
Beijos, L.